Que liberdade de expressão?
Por Evandro Ferreira, do Outonos.com
Quando eu saio por aí dizendo que estou cansado dessa conversa de cidadania, as pessoas acham que eu estou brincando, que isso é só um jeito de falar etc etc. Mas não é. I really mean what I say.
Eu não penso que a solução para os males do Brasil está no combate à corrupção e na transformação dos indivíduos em autômatos que jogam o lixo no lugar certo e denunciam como discriminação racial quem chama afro-brasileiro de negro. E também não acredito no crescimento da influência da ONU sobre o mundo, rumo a um quase governo mundial, supostamente capaz de acabar com as guerras e manter a paz perpétua. Nisso estou com Platão. Como disseram Mortimer Adler e Seymour Cain no primeiro volume de The Great Ideas Program, “ainda que A República seja comumente considerada uma utopia, a paz perpétua não era um dos ideais utópicos de Platão”. Eu não sou a favor da guerra, mas também não acredito que, para evitá-la, tudo se justifique. Não acredito na força absoluta do consenso. Se dois países entram em guerra, acredito que um possa estar certo e outro errado, pois não sou relativista. Quem é relativista acaba acreditando que o consenso é mais importante que a razão. Em certos casos, buscar uma solução pacífica é como fazer um acordo com o sujeito que estuprou e assassinou sua esposa, dando-se a ele várias regalias em troca da promessa de que ele não fará o mesmo com sua filha. É simplesmente ridículo. Só o Ocidente cai nessa de negociação ad infinitum, o que aliás é o ponto de sutentação do terrorismo e da guerrilha. Vejam o Putin no caso do Teatro de Moscou e entenderão o que estou dizendo.
Mas de que serve essa digressão? Serve para mostrar que o preço do consenso absoluto é o fim da liberdade de expressão, ao menos no sentido pleno desta. Li recentemente (não me lembro onde) uma boa definição de consenso: “é o ato de não se levar a sério nenhuma das opiniões contrastantes”. Eu não absolutizaria tanto, pois acho que um certo grau de consenso é possível e necessário. Mas, quando se acredita em certo e errado, começa-se a perceber que até a palavra “opinião” é uma armadilha. Tudo hoje é opinião. Não há mais argumentos bem fundamentados. E se não há tal coisa, não há verdade. Muitas pessoas levam suas vidas inteiras estudando e batalhando para fundamentar seus raciocínios, tudo para participarem de debates e terem seus argumentos considerados com o mesmo peso que os de um estudante secundarista, pois tudo não passa de opinião.
Liberdade de expressão não é apenas poder dizer tudo que se pensa. De nada adianta dizer tudo que se pensa, se ninguém leva a sério o que os outros dizem. O mundo se transforma então num grande palco, onde cada um entra e diz alguma coisa, e então o diretor diz: “o próximo, por favor”!
E é isso que acontece hoje em dia. Você pode dizer tudo que pensa, mas tem que ser “cidadão”. Mas e se eu não concordar com a própria idéia de cidadania? Quero dizer, como pode existir liberdade de expressão, se o pressuposto comum for obrigatório? Então, o que acontece é que as pessoas se fazem de desentendidas. A hipocrisia vira regra. Defende-se a cidadania como valor indiscutível e escuta-se o que os seus opositores têm a dizer, mas sem levá-los a sério. É o desdém a priori com ares de respeito democrático.
E apareceu a palavra-chave. Democrático, democracia. A liberdade de expressão hoje está condicionada pelo regime de governo. No Brasil, mesmo os que se dizem liberais recorrem, em última instância, ao velho argumento de que determinada coisa está “ameaçando a democracia”. Diante disso eu fico pensando sempre em quantas coisas nos ameaçam sem que para isso precisem ameaçar a democracia. A principal característica do liberal brasileiro, que gosto de chamar de “liberal insosso”, é a de que seu maior argumento em defesa da liberdade de expressão é o fato de que estamos em um regime democrático. Cito novamente Mortimer Adler e Seymour Cain, que relembram os ensinamentos de Platão:
O pensar Moderno está tão acostumado a ver a censura como um mal, que chega a ser surpreendente que Platão nem mesmo considere a possibilidade de que possa haver argumentos contra ela. Certamente que argumentos contra a censura baseados na conveniência de uma forma democrática de governo não têm cartaz com Platão. Seria interessante, portanto, que se tentasse encontrar algumas razões contra a censura que não se fundassem em uma forma determinada de governo.
Por que é tão importante que se encontrem razões, por assim dizer, apolíticas para a liberdade de expressão? Pelo simples fato de que se a censura for repudiada em função da democracia, pode haver - e, acredite, HÁ - ocasiões em que o oposto se torna verdadeiro, e a censura pode passar a ser defendida como forma de se manter a democracia. Não estou brincando e nem me referindo necessariamente à ditadura militar. Lembro-me bem de que Antonio Candido disse recentemente que estava disposto a aceitar uma diminuição da liberdade de expressão, se for pelo bem da sociedade. Essa é uma velha história: perder temporariamente a liberdade, em troca de uma posterior “democracia” mais justa. O termo vem entre aspas porque são infinitos os significados que se dá hoje a essa palavrinha. Eles vão desde anarquia capitalista até comunismo.
E se o argumento da democracia (ou de qualquer outra forma de governo) serve tanto para a censura quanto para a liberdade de expressão, o mesmo se pode dizer da cidadania e da tal “construção do consenso”, os quais, em última instância, são subordinados à democracia. Quando Lula nos diz que, para haver um consenso, é preciso que haja opiniões diversas, o que ele está fazendo não é nada além de brincar com as palavras. A rigor ele está certo. Mas quem disse que a política é uma ciência rigorosa? Para todos os efeitos, se há apenas uma opinião (a de que a cidadania é uma beleza, por exemplo), ela se torna um consenso por WO (lembra-se das aulas de educacão física?), ou seja, por absoluta falta de concorrentes. Filosoficamente (ou logicamente) falando, ela não será um consenso, será uma unanimidade. Só que a unanimidade - na política - desempenha o mesmo papel do consenso, a saber, o de regra universal de conduta.
A política, portanto, funciona tanto com várias opiniões (democracia) quanto com apenas uma (totalitarismo). E os demais significados da palavra democracia é que garantem sua ineficácia como argumento em prol da liberdade de expressão. Seria preciso então que se definisse o que é democacia. E, conforme a definição que se desse, esse regime passaria a ser válido apenas se convivesse com a liberdade de expressão. Mas aí já não teríamos mais a liberdade de definir o que é democracia, pois ela já estaria definida a priori. Como se vê, a coisa se torna circular, impossibilitando-se o encontro de uma solução. E a democracia pode até ser totalitarismo e continuar, para todos os efeitos, uma democracia. Para isso basta que os escravos acreditem que são livres, o que hoje não é tarefa difícil se se considerarem os inúmeros mecanismos de dominaçãom das consciências, desde a programação neurolinguística pura e simples até os slogans políticos, como “a esperança venceu o medo”.
Parece-me que o problema principal por que passamos hoje no Brasil é o deslumbramento com a idéia de cidadania. Os veículos de imprensa que têm alcance nacional ainda disfarçam, mas os demais já a acolheram como uma regra inviolável. Basta que se leia o Correio Braziliense ou o Estado de Minas para que se perceba que a mais pura e direta campanha pró-cidadania já se confunde com jornalismo imparcial. Aqui em Belo Horizonte, até os seminários de jornalismo são promovidos pela prefeitura. Quase todos os jornalistas se tornaram praticamente funcionários públicos, e gastam todo o seu tempo discutindo políticas públicas para esse ou aquele setor, como se fossem membros de seus sindicatos. Quando o assunto é educação, discute-se de que maneira esta promoverá a cidadania, que é o objetivo último e quase único. Formou-se uma dobradinha entre universidade, imprensa e poder público, que garante a imunidade crítica dessas três instituições.
Para o jornalista brasileiro padrão, bem como para uma boa parte dos professores universitários, a vida é basicamente um problema de políticas públicas. E a função principal da educação para eles é ensinar às crianças e aos jovens esse corolário. Ética e cidadania há muito se tornaram sinônimos, ilustrando perfeitamente o que diz Olavo de Carvalho em O futuro do pensamento brasileiro (negrito meu):
Por que acontece que, à medida que a opinião da classe letrada se mundializa graças à informatização e à rede de telecomunicações, nessa mesma medida ela perde o senso crítico e a acuidade intelectual ao ponto de confundir normas políticas concretas com princípios éticos universais? [pg. 128]
Não consigo encontrar exemplo melhor no cenário brasileiro do que este da cidadania - que é uma norma política concreta - ser elevada a princípio ético. No plano mundial, tanto os liberais insossos quanto os neo-esquerdistas deslumbrados encontram esse outro exemplo que é o da elevação da democracia a princípio ético universal, através do “Relatório da Comissão Mundial da Cultura e do Desenvolvimento”. Este documento oficial da ONU citado por Olavo de Carvalho no referido livro estabelece os três princípios a partir dos quais deverá ser construída a ética universal: desenvolvimento, democracia e igualdade dos sexos. Os três são políticos, tragicamente confundidos com princípios filosóficos.
Não me sinto capaz de listar e analisar aqui quais são os argumentos apolíticos contra a censura. Contento-me com essa minha tentativa de mostrar que só eles são legítimos e limito-me a deixar essas reflexões, que não são de pouca monta. Eu não troco o meu direito de falar e ser ouvido pela promessa de se “mudar tudo isso que está aí”. Muitos, como Antonio Candido, já estão dispostos a isso. E eu não creio que eles avisarão quando chegar a hora da troca, mesmo porque cada gesto deles já é um pequeno aviso, para quem tem olhos de ver.